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REFRIGÉRIO MÚTUO
No Evangelho de João está registrado um evento que somente ele preservou para
nós. É um evento cheio de significado divino e que traz uma grande luz para nós
quanto à questão de viver no mundo. Refiro-me ao incidente no capitulo 13, em
que nosso Senhor Jesus, cingindo-se com uma toalha e tomando uma bacia, lava os
pés de Seus discípulos. Esse ato de Jesus tem lições para nos ensinar que não
tenho a pretensão de esgotar aqui. Em vez disso, quero que prestemos atenção
particularmente ao Seu mandamento, conforme se segue: "Vós deveis também lavar
os pés uns aos outros. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como Eu vos fiz,
façais vós também. (...) Se sabeis estas coisas, bem-aventurado sois se as
fizerdes" (vs. 14-17). O que é este mútuo lava-pés? Qual o significado de que
devo lavar os pés de meu irmão e que meus pés devem ser lavados por ele?
O aspecto da verdade, especialmente enfatizado aqui, é o refrigério. Como
veremos em breve, é algo muito precioso para nosso Senhor que nós, Seus filhos,
aprendamos a ministrar refrigério aos nossos irmãos, e que estes, por sua vez,
sejam instrumentos de refrigério ao nosso espírito.
Deixe-me dizer, de imediato, que esta passagem não se refere a pecados. Se andar
descalço ou com sandálias, ou até com sapatos, a poeira acumulada em meus pés
será inevitável. Não posso impedi-la. Mas se eu cair e, por ter caído, rolar na
poeira, de modo que esta grude em meu corpo e em minhas roupas - isso não é
inevitável, é totalmente errado. Posso ir de um lugar para outro, mas é
totalmente desnecessário, para mim, rolar pela rua para chegar lá. Posso fazê-lo
sem rolar na lama.
Da mesma forma, na vida cristã, tropeçar, cair e, então, rolar no pó certamente
é pecado, isso exige arrependimento e carece do perdão de Deus Para mim, não é
necessário caminhar com o Senhor dessa maneira, escondendo-me atrás da desculpa
de que "preciso cair de vez em quando; é inevitável!". Isso, todos concordamos,
é errado.
Mas a questão sobre a poeira em nossos pés e que, caminhando pelo mundo, não
importa quem ou quão cuidadosos sejamos, é inevitável que alguma coisa fique
grudada em nossos pés, E claro que se não tivéssemos contato algum com a terra,
certamente nada pegaríamos, mas, para conseguir isso, teríamos de ser
carregados. Se tocar-mos o chão — e quem, seriamente, espera não fazê-lo? —
certamente o que nele está se apegará a nós. Mesmo o nosso Senhor Jesus censurou
Seu anfitrião com as palavras; "Não Me deste água para os pés" (Lc 7.44). Então,
por favor, lembre-se de que o lavar mútuo em João 13 não diz respeito a pecados
cometidos, pois, para estes, sempre há o perdão por meio do sangue de Cristo,
mas dos quais Deus deseja que sejamos libertados. Não, João 13 diz muito mais
respeito ao nosso andar diário no mundo, em que é inevitável que alguma coisa se
grude em nós. "Vós estais limpos", diz Jesus. E assim que o precioso sangue vê.
"Aquele que está lavado não necessita de lavar (...)" (Jo. 13.10) — e, no que se
refere ao pecado, a sentença poderia terminar ali. Mas mova-se pelo reino de
Satanás e, certamente, algo irá apegar-se a você. Como uma película sobre nós,
isso se coloca entre nós e nosso Senhor. E não há escapatória, simplesmente
porque estamos em contato com as coisas do mundo o tempo todo, com seus
negócios, seus prazeres, sua corrupta escala de valores e toda a sua ímpia
perspectiva. Por isso, Jesus conclui com estas palavras: "Senão os pés".
Então, vamos agora à conclusão prática disso. Alguns de seus irmãos e irmãs em
Cristo tem de trabalhar em escritórios ou lojas por, vamos dizer, sete ou oito
horas por dia. E isso não é errado. Não é pecado trabalhar numa loja ou fábrica.
Mas, ao voltar de seu local de trabalho para casa, você não se sente cansado e
desanimado e fora de sintonia com as coisas? Encontra um irmão, mas não consegue
conversar simples e diretamente com ele sobre assuntos espirituais. É como se
algo contaminado o revestisse. Repito: isso não e necessariamente pecado; é que
seu contato com o mundo lhe põe uma película que lhe deixa sem brilho. Você não
pode evitar de senti-la, pois ela parece lhe provocar uma incapacidade de
voltar-se para Deus. Aquele contato luminoso que tivera com Ele, pela manha,
parece ter-se tornado em trevas; todo o seu frescor se foi. Nós todos conhecemos
essa experiência.
Ou, dando outro exemplo, algumas de nossas irmãs precisam fazer o serviço
doméstico. Imaginemos que uma jovem mãe está preparando o Jantar e cozinhando
algo no fogão. Então, ao mesmo tempo, o bebé chora, a campainha da porta toca, o
leite fervendo derrama - tudo lhe vem ao mesmo tempo e com urgência. Ela corre
para um, mas deixa o outro! Depois, quando tudo está, por fim, resolvido,
senta-se e sente como se necessitasse de um poder que a elevasse novamente a
Deus. Ela tem consciência de que há algo — não um pecado, mas como se houvesse
uma camada de poeira sobre tudo —, que adere como uma película, entre ela e seu
Senhor, e ela se sente mancha da e suja. Não há aquela via clara e limpa que a
conduz a Deus de pronto. Acredito que isso ilustra, para nós, a necessidade do
lavar dos pés.
Muitas vezess sentimo-nos cansados e esgotados em virtude de nossos serviços
seculares. Quando paramos para orar, parece que temos de esperar por um
instante, que vamos levar dez ou vinte minutos para voltar àquele lugar onde
realmente podemos alcançar a Deus. Ou, se nos sentamos para ler a Palavra,
parece que precisamos de certo esforço para recobrar novamente a receptividade
ao Seu falar. Mas como c bom quando, ao voltar para casa, encontramos um irmão
com um coração transbordante, com o frescor da comunhão com Deus! Sem qualquer
outra intenção, ele simplesmente aperta nossa mão e diz: "louvado seja Deus!".
Ele pode nem saber, mas, de alguma forma, é como se viesse com um espanador e
limpasse tudo. Imediatamente, sentimos que nosso contato com Deus foi
restaurado.
Às vezes, você pode ir a uma reunião de oração com um espírito pesado, sob o
efeito do dia de trabalho. Alguém pode orar, e você continua sentindo a mesma
coisa; e outro ora, e não há diferença. Mas, então, outro irmão ou irmã ora e,
de alguma forma, você imediatamente sente o poder soerguedor. Você está
refrescado; seus pés foram lavados. O que, então, significa lavar? Significa
restaurar seu frescor original. Significa trazer, uma vez mais, as coisas de
volta a um ponto de tal clareza que é como se tivessem acabado de sair da
imediata presença de Deus, novas, de Sua mão.
Não sei quantas vezes, pessoalmente, senti-me assim, deprimido, e não era
exatamente por causa de nenhum pecado, mas me sentia coberto pela poeira do
mundo; então, encontrava um irmão ou irmã, alguém que não podia saber de toda a
minha situação, mas que, com uma observação, trazia nova luz para tudo. Quando
isso acontece, você simplesmente sente que toda a escuridão se vai, a película é
varrida. Louvado seja Deus! Você é refrescado e restaurado, de imediato, à
condição onde pode, diretamente, sentir Seu toque novamente. É isto o lava-pés:
refrescar meus irmãos em Cristo, trazer um irmão novamente ao lugar no qual é
como se ele tivesse acabado de sair da presença de Deus. É este o ministério de
um para o outro que o Senhor deseja ver entre Seus filhos.
Se caminharmos com Deus, não há um único dia em que não possamos, se assim o
desejarmos, ser um refrigério para nossos irmãos. Este é um dos maiores
ministérios. E pode ser nada mais que um aperto de mão. Pode ser uma palavra de
encorajamento, quase dita ao acaso. Pode ser a luz do céu em nossa face. Mas, se
o Senhor tem Seu caminho em nós e estamos em um estado no qual não há nenhuma
nuvem entre nós e Ele, perceberemos que estamos sendo quietamente usados.
Podemos nem estar cientes disso, pois é melhor que nem queiramos sabê-lo — de
fato, pode ser melhor jamais sabê-lo. Mas, quer saibamos ou não, constantemente
somos usados para o refrigério de nosso irmão. Quando ele estiver desanimado e
em trevas, quando ele tiver um fardo no coração ou uma venda nos olhos, quando
ele estiver com seu brilho apagado e manchado, então, virá a nós. Talvez não se
demore, ficando por apenas alguns minutos. Busque por esse ministério. Busque,
em Deus, a graça para ajudá-lo. Normalmente, pensamos que seria tão bom se
pudéssemos pregar longos sermões para uma grande platéia, mas poucos possuem
esse dom c muitos não são alcançados pêlos poucos que o têm. Por outro lado,
refrescar o coração dos santos é um tipo de ministério que qualquer um pode
exercer e pode alcançar outros em qualquer lugar. Na avaliação de Deus, isso não
tem preço.
Mas, para servir aos outros dessa maneira, precisamos atender às condições. Sc
realmente caminharmos com o Senhor, é claro que não haverá dúvidas de que
seremos usados, pois, para Ele, não há limitações. Se nós mesmos estivermos
brilhando, com o coração transbordante de Sua alegria e paz, certamente haverá
um derramento. Então, a questão simples que lhe proponho é: Existe algum ponto
de controvérsia entre você e Deus? Refiro-me, é claro, a coisas reais e
conhecidas. Se não há nada em especial, então, não há necessidade de você ficar
procurando para encontrar; o próprio Senhor sempre irá revelá-la. Quando Ele
quiser trazer à luz, algo que você tem negligenciado, há de apontar-lhe tal
coisa, e você saberá. Não há necessidade de você voltar seus olhos para dentro
de si mesmo c ficar analisando c conferindo cada sentimento para tentar
extirpá-lo. Simplesmente, louve a Deus! É papel de Deus, e não seu, brilhar em
seu coração c mostrar-lhe quando estiver longe Dele.
Mas uma coisa é certa: se você tiver alguma controvérsia com Deus, poderá apenas
manchar as pessoas. Jamais poderá lavar-lhes os pós. Quando estiverem
deprimidas, você as deixará ainda mais deprimidas. Quando sentirem-se pesadas,
você irá ato elas e fará com que se sintam ainda mais pesadas. Em vez de
refrescá-las e restaurá-las com o frescor que vem de Deus, irá empurrá-las para
a mais profunda depressão. Estar em desacordo com Deus é o caminho certo para
drenar a vida de Sua Igreja, visto que a maior manifestação de poder, eu creio,
está na capacidade de constantemente refrescar outros. Não tem preço esse toque
do céu que levanta, limpa e renova.
"Vós deveis também lavar os pés uns aos outros". De todos os mandamentos de
Jesus aos Seus discípulos, este é—e uso a expressão em seu sentido literal o
mais dramático. Para fixar neles sua importância. Ele mesmo o representou
perante eles. Foi uma forma de expressar Seu amor pêlos "Seus, que estavam no
mundo" (v, l). Pôs-se a mostrar aos Seus discípulos o que entendia por
ministério: não é um trabalho do púlpito, mas e servir uns aos outros com uma
bacia c uma toalha. Sempre haverá a necessidade de restaurar as pessoas que
caíram, de trazer ao arrependimento os fracos que pecaram; mas a maior
necessidade dos santos, hoje, é de refrigério, como que quero significar
traze-los de volta ao que é original e de Deus. Isso é poder. O próprio Jesus
"havia saído de Deus" (v. 3) para isso. Não sei como isso aterá a você, mas
penso que não há maior poder para Deus do que ser por Ele refrescado perante o
inundo. Você não acha que essa é a maior manifestação do poder da vida divina?
Em um sistema mundano obscurecido pela fumaça do abismo, como nos alegramos cm
encontrar santos que tom o frescor do límpido ar do céu. Tal frescor traz de
novo, para você e para mim, o divino sopro de vida.
Agradeço a Deus pelo privilégio de, em meus dias de juventude, ter conhecido uma
das mais raras santas. Convivi com aquela irmã1 por muitos anos e conhecia suas
muitas qualidades espirituais; porém, penso que dentre todas a que mais me
impressionava era o sentimento da presença de Deus que ela transmitia. Era
impossível permanecer muito tempo ao seu lado ou mesmo entrar em sua sala e
dar-lhe um aperto de mão sem sentir a presença de Deus vindo sobre você. Não há
como explicar. Mas era possível senti-la. Todos que estiveram com aquela irmã
deram o mesmo testemunho. Tenho de confessar que, naqueles dias, havia momentos
em que me sentia abatido e parecia que tudo estava dando errado. Mas bastava
entrar em sua sala e imediatamente me sentia repreendido e logo passava a sentir
que estava face a face com Deus. Eu era refrescado.
(o autor está-se referindo a Margaret Barber, missionária inglesa que o treinou
na vida com Deus por muito tempo. A contribuição dela para a busca e maturidade
espirituais de Nee são incalculáveis. Uma pequena biografia dela pode ser
encontrada no livro O Poder latente da Alma)
Por que acontecia isso, essa imediata restauração: Certamente não é por ser um
ministério de uns pouco privilegiados. E desejo de nosso Senhor que cada um de
nós seja assim, capaz, de infundir o poder de fazer nossos irmãos e irmãs quando
se encontrarem apagados Por favor, lembre-se — ouso dizer Isto? — que às vezes
estar apagado impede mais o impacto da vida do cristão sobre o mundo do que seus
pecados reais e conscientes. Qualquer um de nós pode, de vez em quando, cometer
algum pecado, mas, porque somos sensíveis a isso buscaremos e encontraremos
perdão. Mas muitas vezes quando estamos apagados por horas pela poluição de
mundo, uma vez que isso não é de fato um pecado, permanecemos despreocupados. E
aí que o impacto divino que deveríamos causar sobre o mundo fica neutralizado.
Como é bom nessas horas ter um irmão ou irmã por perto, que pode erguer-nos a
novamente ter uma renovada comunhão com Deus!
Quais, então, são as regras? São duas.
Primeira, como já vimos, não pode haver nenhum conflito declarado entre mim e
meu Senhor sem ser resolvido; caso contrário, estarei completamente fora desse
ministério. Seja qual for o problema, deve ser resolvido de uma vez, ou serei
inútil. Longe de ser um recurso para a Igreja de Deus, terei me tornado somente
um fardo. Não posso contribuir com nada, a não ser aumentar a coluna de débito
da vida de Seus filhos. Para ser um colaborador, deve haver uma clareia
transparente entre mim e Deus em todas as esferas da consciência. Então, livre
de tal desarmonia, posso também ser o meio para ajudar meus irmãos a retomarem
seu lugar de poder contra o mundo.
Segunda — e para evitar equívocos é necessário deixa-la bem clara —: lembre-se,
por favor, de que esse refrigério é mútuo. "Vós deveis também lavar os pés uns
aos outros", disse Jesus. Aquele que refrigera deve esperar ser refrigerado
pelos outros também. Muitas vezes, o Senhor pode usar você, mas, igualmente,
muitas vezes Ele pode usar alguém para refrigerá-lo. Não existem alguns poucos
escolhidos para a tarefa espiritual de "os que refrigeram", assim como nenhum de
nós está livre de andar por este mundo e necessitar ser refrigerado. Como Pedro,
nenhum de nós está autorizado a dizer de si mesmo: "Estou acima desse estágio.
Estou em tamanha comunhão com Deus que estou acima da contaminação, e posso orar
ou pregar sem a necessidade de tal ministério. Nunca me lavarás os pés!".
Não existe uma classe superior de irmãos na igreja que não necessite ser
refrigerado. E algo de que cada servo de Deus depende. Trabalhando numa oficina
ou em urna covinha o dia todo, você pode precisar que alguém lhe ajude a
restaurar seu brilho; mas muitos de nós trabalham o dia inteiro nas igrejas, e
também precisam ter o brilho restaurado! Nossa necessidade de restauração é
frequentemente tão grande quanto a dos outros, ainda que possamos ser enganados
e negligenciá-la. Não importa se trabalhamos em qualquer esfera obviamente
secular ou se estamos envolvidos com as assim chamadas coisas espirituais, o
mundo está ao nosso redor, cercando-nos. Conseqüentemente, de vez cm quando,
precisamos que algum irmão ou irmã nos ajude a encontrar aquele toque
refrescante de Deus, aquela renovação do poder divino.
Assim, o princípio do Corpo é, muito simplesmente, refrescar e ser refrescado.
Quanto mais caminhamos com o Senhor, mais precisamos dos irmãos. Pois, neste
ministério, nenhum de nós e insignificante e nenhum de nós alcança o ponto onde
não necessita ser ministrado por ninguém. Minha oração por mim mesmo é que, de
vez em quando. Deus use-me para refrescar o espírito cansado de alguém e que, da
mesma forma. Ele, de vez, em quando, use alguém para tocar meu espírito abatido
e refrigerar-me. Se, por intermédio daquele irmão, a falta de brilho provocada
pelo mundo é tirada de mim, de modo que eu chegue cansado mas prossiga renovado,
então, ele foi um ministro de Cristo para mim.
Assim, o que tentei descrever cm termos simples equivale a uma frente unida
contra o mundo. E isso não é algo pequeno. Se crermos o suficiente para
praticá-lo, ele contem, estou convencido, o poder para fazer tremer as mais
poderosas fortalezas de Satanás. Nas palavras de Jesus: "Se sabeis estas coisas,
bem-aventurados sois se as praticardes" (v. 17 - VRA2).
Capítulo 8 - do Livro Não Ameis o Mundo - da
Editora dos Clássicos - de Watchman Nee.
Versículo Para Ler e Orar |
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